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O menino que curtia Mario Lanza canta em latim no Rosário dos Pretos


A rotina de solidão do artista Luiz Towar – nome artístico que ganhou nos concursos de calouros em Recife, nos anos 1960 - é preenchida num encontro semanal com parte da história de Natal (RN). Aos domingos, ele acorda cedo para juntar sua voz ao coro dos hinos em latim entoados pelos frequentadores da Missa Tridentina, celebrada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, bairro da Cidade Alta, na capital potiguar. “Tem que acordar cedo: quem canta não pode fazer extravagância”, reforça. Construída pelos escravos e inaugurada no início do século XVIII, a igreja é a única na cidade em que a missa segue o rito romano, com a maior parte da celebração em latim.

Batizado Luiz Gonzaga Fernandes de Souza Filho, Towar, 70 anos, mora só numa casa de dois quartos na rua do Areal, nas Rocas, bairro onde nasceu e foi criado. Uma herança deixada pela mãe, segundo ele devota de Nossa Senhora. Era menino quando perdeu o pai, que morreu com 66 anos. Dos seis irmãos, dois morreram e quatro (três homens e uma mulher) vivem em Natal. Mas a solidão não o preocupa. “Tem uma pessoa que morava comigo e eu com ela, mas não deu certo”, desconversa sobre uma recente separação. “Estou magoado ainda”, ri. Alinhado, cordão com crucifixo de prata no peito, ele costuma ser um dos primeiros a chegar à igreja. Antes da celebração, que começa sempre às 9 horas, um breve aquecimento na voz com a “Ave Maria” rezada antes da missa.

Towar frequenta a igreja desde menino. “Eu ouvia os hinos, gostava, aprendia, mas não decorava. Quando voltei, tive que decorar tudindo”, resume, ao contar o retorno à igreja, depois da morte da mãe, há cinco anos. “Minha mãe tinha duas irmãs que foram freiras, meu avô, pescador, também era muito religioso.”, lembra. Além da igreja, o gosto pela música sacra veio com Mario Lanza (foto abaixo), tenor norte-americano morto em 1959. Astro de Hollywood, Lanza ficou famoso na década de 50 ao interpretar no cinema o também tenor Enrico Caruso, este italiano. “Eu menino já acompanhava Mario Lanza. Eu vendia revistas na porta do cinema para comprar o ingresso e assistir Mario Lanza cantar a Ave Maria em latim”, recorda.

Towar voltou-se para a religião depois de uma vida da qual o mínimo que se pode dizer é que foi – intensa. É dessas pessoas com as quais a gente, quando se dá conta, já conversou por mais de duas horas. A mente do artista o trai algumas vezes, mas quando volta suas recordações para sua experiência com o mundo artístico, percebe-se o brilho no olhar de quem desde cedo tomou seu próprio destino nas mãos para conhecer o mundo. E na época do Luiz adolescente, o mundo era Recife. “Fui primeiro com uma amiga de minha mãe. Depois ia sozinho. Pegava o trem aqui nas Rocas e ia sozinho”, conta.

As “aventuras de Towar” incluem a época de ouro do rádio, quando participava dos programas de calouro (primeiro em Natal) cantando samba e chorinho “para perder o medo do microfone” e depois em Recife. Incluem o início dos programas de auditório e concursos de calouros na televisão, quando foi empregado “de carteira assinada” da TV Jornal do Comércio, na capital pernambucana. Também faz parte de sua vida o mundo do circo, desde as brincadeiras no quintal de casa até o picadeiro, em Recife, quando suas lembranças se encontram com o mundo glamoroso das vedetes, inclusive uma das mais famosas da capital pernambucana: “Vera Regina”, lembra. Foi quando ganhou o nome artístico. “O Towar foi um paraibano – apresentador do canal 6 em Recife – ele que botou esse nome”, recorda.

Depois dessas aventuras todas por Recife e Natal e da morte da mãe, Towar se viu sozinho no mundo. “Ela morreu com 105 anos. Eu então saí procurando uma igreja para quando eu quisesse lembrar de minha mãe. Aí me disseram – olha, tem uma igreja aqui que a missa é em latim, mas não vai ninguém”, recorda com um sorriso tímido. “Daí falei com o Monsenhor (Lucilo Almeida, reitor da igreja) e estou aqui até hoje. Na Igreja do Rosário dos Pretos”.

Em relação à música, reforça que há que se ter disciplina. “Eu já fumei, eu já bebi, mas nunca fui para um palco com um cigarro no dedo”, justifica. E dá algumas dicas. “O artista ... quem canta tem que estar bem alimentado. Evitar comida com osso para não arranhar a garganta. Tem que comer um filezinho. Tem que comer coisa cara. Ou então comer uma canjinha, um pirão de ovo”, brinca.

Sobre a Missa Tridentina, lembra que ainda menino ouvia os adultos falarem sobre o celebrante passar a maior parte do tempo do ritual de costas para os fiéis. “O pessoal costumava dizer: a gente vai pra missa sai da missa e não vê o padre”, conta. Para ele, a religião é a base de tudo. “Um presente de Portugal”, diz, referindo-se aos laços culturais que unem os dois países e ao fato de se sentir parte da história da cidade ao manter a tradição da Missa Tridentina.

Ele também costuma acompanhar, a pedido da secretaria da igreja, alguns prestadores de serviço em pequenos reparos realizados no local. Uma maneira de contribuir para o crescimento da Igreja, acredita. “Você vê essas coisas aí de corrupção ... mas a Igreja continua. E vai crescer mais ainda. Eu acho até que a que a igreja aqui no Rio Grande do Norte vai crescer muito com a canonização dos mártires de Cunhaú e Uruaçú”.

Escravidão, história e fé

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos está fincada na história da cidade como um marco de fé e resistência. Foi finalizada entre 1713 e 1714, de acordo com o historiador Câmara Cascudo.

Mas essa história começa há mais de 500 anos. A devoção a Nossa Senhora do Rosário tem sua origem entre os dominicanos, por volta de 1200. São Domingos de Gusmão, inspirado pela Virgem Maria, deu ao rosário sua forma atual. Isto pode ser comprovado em episódios revelados em sua iconografia. A primeira irmandade do rosário foi instituída pelos dominicanos em Colônia (Alemanha), em 1408. Logo a devoção se propagou, sendo levada também por missionários portugueses ao Reino do Congo.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário chegou ao Brasil no século XVI. É que no Brasil-Colônia a Igreja Católica, sempre de portas abertas para novos fieis, permitiu a criação de irmandades e igrejas consagradas aos negros, impedidos de frequentar as mesmas igrejas de seus senhores.

E assim, junto com São Benedito, Nossa Senhora do Rosário tornou-se também santa de devoção dos negros. No caso da santa, uma das teorias é que os escravos recolhiam as sementes de um capim, cujas contas são grossas, denominadas "lágrimas de Nossa Senhora", e montavam terços para rezar.

A partir do fim do período colonial, as irmandades do Rosário passam a ser constituídas pelos "homens pretos". Em Natal, essa conexão foi se perdendo ao longo da história e os registros da irmandade estão mais visíveis no interior, na região do Seridó.

Clique nos links abaixo para conhecer um pouco sobre a história da irmandade:


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