Por Renato Moraes
O cenário é a cidade de Jardim do Seridó, Rio Grande do Norte. Quando saiu de casa para defender a tradição centenária dos homens pretos, herdada de seu tetravô, Deodato Mendes dos Santos, o historiador Gabriel Santos, 28 anos, porta-bandeira do cortejo, por motivo de saúde do lanceiro trocou a bandeira pela lança. No peito protegido pelo traje brilhante em azul e branco, o mesmo orgulho.
“Tenho isso nas minhas veias. Uma tradição que se mantém viva por tantos e tantos braços que sofreram, sim, os preconceitos. E ainda sofrem até hoje. Então, a responsabilidade é muito grande”, diz Santos.
Para entender essa história é preciso mergulhar em parte da própria história da Irmandade do Rosário (ver matéria abaixo). As cidades de Seridó potiguar e da Paraíba são repletas da história dos povos tradicionais, manifestada por meio de festejos em homenagem a São Benedito, por exemplo, e à própria Nossa Senhora, esta última encerrada com o tradicional cortejo dos Reis e Rainhas dos Reinos Pretos.
Segundo Gabriel Santos, a procissão carrega um discurso irônico, uma espécie de recado aos colonizadores-escravagistas, mas também de valorização e homenagem.
“Se vocês têm o rei de vocês, de Portugal, nós também temos os nossos. Eles também estão ali rememorando os reis e as rainhas da África, de onde eles foram retirados”, explica.
“Eu não faço isso para mim. Eu faço isso por todos aqueles que sofrem a intolerância religiosa” completa. Gabriel é formado em História pela UFRN/Campus Caicó e hoje atua como coordenador do Centro de Referência Assistência Social (CRAS) do município, com participação, ainda, no Conselho Municipal e na Secretaria de Cultura da cidade.
Sankofa, um encontro de saberes
Em novembro de 2023, um evento multicultural reuniu pela segunda vez várias manifestações populares de matriz africana no RN. Foi o 2º Festival Sankofa, realizado em Jardim do Seridó e comunidade quilombola Boa Vista, em Parelhas. O coordenador do evento fala com o mesmo orgulho sobre sua ancestralidade.
“Eu sou Júlio César Silva de Oliveira. Mas aqui no Sítio Currais Novos, zona rural de Jardim do Seridó, onde eu moro, sou conhecido por Julhin de Tia Lica e eu carrego esse nome comigo. E ele é um nome muito significativo, porque representa a minha ancestralidade, quem veio antes de mim, que foi essa mulher sertaneja chamada Maria das Graças, mas que todo mundo conhece por Tia Lica, justamente por ter sido a professora aqui da comunidade”.
Mas há que se separar as coisas, conforme lembra Gabriel Santos. O Sankofa, a festa em homenagem à santa e os festejos de reinado, parte da tradição da Irmandade dos Homens Pretos. Tudo isso foi reunido no final do ano passado, o que resultou num evento recheado de emoções e significados, um encontro programado para promover a troca de saberes, conversas sobre fortalecimento e resistência, com destaque para a dança e o corpo.
O evento valoriza o presente, mira o futuro, mas sempre valorizando o passado. O conceito de Sankofa (Sanko = voltar; fa = buscar, trazer) origina-se de um provérbio tradicional entre os povos de língua Akan da África Ocidental, em Gana, Togo e Costa do Marfim. Em Akan “se wo were fi na wosan kofa a yenki” que pode ser traduzido por “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Como um símbolo Adinkra, Sankofa pode ser representado como um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro.
“Eu sou desse chão e por isso pesquiso e vivo esse chão chamado Seridó”, diz Julhin de Tia Lica, coordenador do 2º Sankofa, que participou da montagem e edição de documentário produzido pelo Museu Câmara Cascudo sobre a Festa do Rosário de Jardim do Seridó em 1963, quando o festejo completou 100 anos. Clique na imagem para assistir.
Irmandade é repositório de fé e resistência
O culto a Nossa Senhora do Rosário foi introduzido por São Domingos de Gusmão e foi difundido pelos dominicanos a partir do século XIII. As irmandades criadas em devoção a Nossa Senhora do Rosário apareceram em Lisboa em meados do século XV e rapidamente se disseminaram pelo império português, África e América.
A Irmandade dos Homens Pretos de Olinda foi a primeira do Brasil, instalada em meados do século XVI como ferramenta de evangelização e controle da população, sobretudo a mais pobre, pela Igreja católica. Com o passar do tempo, muitos dos escravos acabaram encontrando na religião local um refúgio para a situação bastante opressora, sendo a Nossa Senhora do Rosário uma das santas mais reverenciadas. São Benedito também faz parte dessa devoção.
Entretanto, um problema ainda permanecia, pois os negros não podiam frequentar as mesmas igrejas que seus senhores. Impossibilitando a participação de toda a liturgia e rituais que são cruciais na fé católica. Não custa lembrar que os escravos eram enterrados em covas rasas e coletivas sem os ritos fúnebres, nesse caso católicos, ou de suas religiões pregressas.
Com o passar dos séculos os negros, cativos ou livres, africanos ou brasileiros passaram a ser maioria nas irmandades do Rosário. Além do aspecto religioso, pela importante assistência prestada a escravos e libertos em situação de dificuldades e doenças, além de assegurar os enterros em locais santos e garantir as missas e orações póstumas que encomendassem as almas.
Para além das questões devocionais e de ordem prática, as irmandades do Rosário de Homens Pretos tinham um importante calendário festivo que promovia interação, integração e reconstrução na América de vínculos familiares perdidos na diáspora, sociabilização e formação de redes de apoio e auxílio.
Eram importantes no sincretismo de elementos das culturas africanas com a religião católica, resultando numa religiosidade particularmente brasileira, o que se refletia principalmente nas festas, sendo comum a sagração de reis e rainhas, tal como acontecia em alguns reinos no continente de origem, além da mistura das danças, músicas, congadas, além obviamente das missas e procissões.
No Rio Grande do Norte, segundo artigo de Veríssimo de Melo publicado em 1980 na Revista Afro-Ásia (leia aqui), há registros da irmandade em Natal, onde ainda existe a Igreja do Rosário dos Homens Pretos, na Cidade Alta, embora a irmandade já tenha sido extinta. “Há vinte anos passados, nas procissões, lá estavam os negros e mulatos da Irmandade de São João, com sede naquela igreja, remanescente talvez da confraria do Rosário, com suas opas brancas e gola vermelha. Pelo interior, sabe-se da existência de várias confrarias dessa devoção, como a do Caicó (fundada em 1771) e a de Jardim do Seridó”.
As cores da festa em Jardim do Seridó podem ser acessadas em exposições fotográficas patrocinadas pelo Museu Tronco, Ramos e Raízes, um museu virtual resultado do projeto de extensão desenvolvido no Departamento de Antropologia aprovado pelo PROEX/UFRN. Leia mais sobre o tema no artigo A Irmandade do Rosário dos Homens Pretos em Caicó/RN, de Marcos Fernandes de Oliveira.
Os personagens do cortejo real
Segundo Gabriel Santos, o cortejo dos Reis e Rainhas dos Reinos Pretos é dividido em dois grupos: os brincantes e o grupo do reinado. Os porta-bandeiras são aquelas pessoas que vão na frente, como batedores, anunciando que atrás estão os guerreiros, os lanceiros, a música.
Os brincantes são formados pelo grupo de espontão. São os lanceiros, seguidos pela percussão, a batucada. O grupo dos lanceiros é dividido entre aqueles que jogam a lança e brincam com a lança. “Eles fazem o pulo, conforme a gente chama”, detalha.
Imagem: Alejandro Escobar/Museu Tronco, Ramos e Raízes
A batucada é formada pelos caixeiros e pifeiros. “Que muito se assemelham, em algumas situações, com aquelas bandas cabaçais. Mas nesse caso, de Jardim (do Seridó), nós não somos uma banda cabaçal, porque nem tem as cabaças e não tem os outros instrumentos. Nós só temos caixas, pífanos e zabumbas”, explica Santos.
O grupo do reinado foi se dinamizando, construindo outros personagens, mas em resumo ele é introduzido pelo casal de pajens, que vão à frente dos adultos. “São duas crianças que em determinadas situações levam as coroas, naquela né almofadinha para o momento da coroação em seguida”, diz o historiador.
São dois tipos de reis. Os reis do ano são reis transitórios. No caso da festa em Jardim do Seridó, o reinado é alternado: um ano o rei é de Jardim do Seridó, no outro de Boa Vista, comunidade de Parelhas.
Imagem: Gabriela Barbosa/Museu Tronco, Ramos e Raízes
Os reis perpétuos, como o nome sugere, são aqueles cujo reinado é vitalício. Mas quando as condições físicas do rei ou rainha não permitem, o poder é transferido a outra pessoa.
Segundo Santos, existia toda uma estruturação em cima desse reinado, que era um pouco mais dinâmico. Nesse cenário, rei e rainha tinham mais uma função ilustrativa, sem uma atuação forte, mas os demais tinham uma funcionalidade dentro da própria irmandade.
“Por exemplo, o presidente e a presidenta, eles presidiam a reunião. O juiz e a juíza deliberavam a respeito da entrada de irmãos e irmãs dentro da Irmandade do Rosário e o escrivão fazia a ata”, enumera Santos. “Esse primeiro casal de escrivãos, eles não são perpétuos, porém normalmente são as mesmas pessoas sempre”, detalha Gabriel.
No passado, na visão de Gabriel, as irmandades tinham esse caráter de resistência, que mantêm até hoje, mas agora com uma perspectiva mais de manutenção da cultura, iniciada no século passado, estando também relacionada à memória, à ancestralidade.
Desde 2023, a Irmandade de São Sebastião e Nossa Senhora do Rosário, e a Festa do Rosário de Jardim do Seridó são reconhecidos como patrimônio histórico e cultural do Rio Grande do Norte pela Lei 11.624.
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